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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

O ruído nas palavras [639]

 


Os outros não apreciam as nossas palavras

com os ouvidos com que nos escutamos ao afirmá-las.

Quando nos escutamos,

até o ouvido interior com que nos escutamos

não ouve o mesmo que os ouvidos externos.

Se nos enganamos, escutando-nos,

logo nos podemos questionar

como é que alguém nos entenderá.

O prazer de se sentir percebido, é impossível

a quem não se quer e/ou não se é percebido,

coisa que muito sobrevém aos complicados

e, por isso, incompreendidos.

Os inteligíveis, poucos são,

aqueles cuja mensagem é a mesma

no emissor e no recetor, sem ruídos,

esses nem precisam de ter o receio

de não serem compreendidos,

esquecendo os duros de ouvido.

E, assim, nunca saberemos,

só podemos imaginar,

de quantas desconchavadas ideias

é construída a perceção

que os outros têm de nós pelo que dizemos.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2025


segunda-feira, 20 de outubro de 2025

A indiferença da pele [638]

 


Se moras nos subúrbios da vida

e sonhas na floresta das tuas fantasias,

ao teu remanso verde,

por certo imaturo,

nem os rumores dos teus gestos se mostram.

Se repousas nos teus sonhos

como se fossem searas imensas,

dos cálices da tua renúncia

apenas ingeres o choro de falsa viuvez

e nem vês os comboios que passam por ti.

Então, os dias claros,

o céu limpo sem nuvens

e o piano que espera as tuas mãos,

num bucolismo ausente do som

do alvoroço polifónico da vida,

têm o paladar insípido do que não possuis.

E tudo não passa

de uma flauta mágica, mas silenciosa,

por onde passas repetidamente

a indiferença da pele a caminho do nada.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2025


segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Hidroavião barulhento [637]

 


Há pombas brancas

que dançam nas tuas mãos

e a tua boca tem pássaros

que aos meus sentidos vêm ciciar.

Nos teus movimentos,

vejo-te andorinha quando te levantas,

cotovia quando me olhas

ou albatroz nas tuas fúrias

de vaidosa desinteressada.

És um bulício de asas,

um hidroavião barulhento

que assusta as gaivotas

que querem pousar no meu lago.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2025


segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Por isto ou por aquilo [636]

 


Por isto ou por aquilo

há ideais, que são nobres,

que acabam no lixo,

como há francos desejos

que se extraviam

nos turbilhões da vida.

Mas também porque

a energia sem agilidade

é um corpo quase morto

e a agilidade sem energia

é uma pena levezinha

a voar sem nenhum vento.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2025


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Alegretes [635]

 


Surpreende-me a alegria

dos que não sabem que são infelizes.

O seu quotidiano,

em favelas ou palácios,

é inundado por tudo

o que compreenderia uma opressão

face a um sentir autêntico.

Sendo a sua vida aérea,

o que os devia fazer padecer

atravessa-os sem lhes beliscar o ânimo

e são como alguém com uma dorzita

a quem lhe saíram milhões num sorteio.

Possuem a fortuna da andança

de um viver inconsciente,

uma dádiva dos Deuses,

e são idênticos e elevados como Eles

no júbilo e no sofrimento.

Como eu gostava de ser como vós,

meus queridos alegretes.

 

 

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Soldado de chumbo [634]

 


Os teus fios de joias distraídas

viram os teus lábios nos meus

sem celebrar o destino,

que seria despido

do perfume das rosas vermelhas.

Eram cravos negros sem esperança

que habitavam os teus olhos,

que sabias que eu sentia

nos teus beijos indecisos e sofridos.

Ainda assim,

longe das rosas e perto dos cravos,

o mar não existia nas cascatas do fascínio,

a água era algodão doce

desencrespada por sossegos.

E soube dos teus segredos e percebi

o soldado de chumbo na tua cascata,

numa perícia imóvel,

violenta e permanente,

mas não soube se era medo ou timidez

que inibia a denúncia

ou a fuga implantada nos teus sonhos.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Da vida [633]

 


Se não pudermos obter algo de notável da vida,

exploremos pelo menos obter algo

de não podermos obter algo de notável da vida.

Façamos da insolvência uma glória,

algo afirmativo e alicerçado com pilares,

grandeza e aceitação da vida.

 

Se a existência não nos concedeu

mais que uma frigideira como prisão,

como a que Salazar oferecia aos opositores,

tentemos decorá-la

com os vestígios dos nossos sonhos,

esboços de cores fortes,

cinzelando o nosso desprezo

na dura hipocrisia das paredes que nos cercam.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Alzheimer [632]

 


O nevoeiro

retira gradualmente as mãos do pensamento.

Os gestos ficam desorganizados, até suicidas,

à espera que as curvas sinuosas das andorinhas

indiquem o caminho sem destino conhecido.

A espada invisível quase toca no pescoço

e a fala encurta o acento

numa insciência tónica gradativa.

Os desconjuntos das palavras não rimam

e andarilham em ziguezagues hilariantes

por atalhos aleatórios incitados pelo vento.

Cada miscelânea da memória

plasmada pelos sonhos na realidade

circula em contramão

e Deus e o Diabo

estão cada vez mais enovelados.

Ainda que chovam ajudas

a mirração do propósito acaba num rio sem caudal.

A demência abre a porta e alimenta-se da memória

até que fica dona das palavras e dos gestos

até ao fim, afortunadamente ignorado.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


A Doença de Alzheimer é uma doença neuro degenerativa crónica e a forma mais comum de demência. Manifesta-se lentamente e vai-se agravando ao longo do tempo. O sintoma inicial mais comum é a perda de memória a curto prazo, com dificuldades em recordar eventos recentes. Os primeiros sintomas são geralmente confundidos com o processo normal de envelhecimento. À medida que a doença evolui, o quadro de sintomas inclui dificuldades na linguagem, desorientação, perder-se com facilidade, alterações de humor, perda de motivação, desinteresse por cuidar de si próprio, desinteresse por tarefas quotidianas e comportamento agressivo. Em grande parte dos casos, a pessoa com Alzheimer afasta-se progressivamente da família e da sociedade. Gradualmente, o corpo vai perdendo o controlo das funções corporais, o que acaba por levar à morte. Embora a velocidade de progressão possa variar, geralmente a esperança de vida após o diagnóstico é de três a nove anos. (in Wikipedia).


Este poema foi escrito com base na observação desta doença em 3 pessoas da família.


segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Alterações climáticas [631]

 


Curvado sobre a terra

a fazer regos para que a água passe

e regue o milheiral na perfeição,

cavo com o jeito dos meus antepassados.

Ao mesmo tempo,

desço um rio bem largo e caudaloso

dentro de um barco a remos

evitando dragões que dormem nas margens.

E eis que salta uma rã aos meus pés

e um dragão cospe fogo

por cima das águas turvas do rio.

O susto e o desassossego misturam-se,

salto para o rego seguinte,

que ainda está seco,

e remo depressa para fugir ao dragão.

As duas coisas são claras como água

de uma fonte cristalina:

a terra molhada da enxurrada

que os meus pés descalços pisam

e a quilha do barco em terra seca

onde os remos proclamam

uma contínua chiadeira por falta de óleo.

Olho para trás e vejo que o milho

está a ser queimado pelos dragões.

O convés está cheio de gente,

a assistir, insegura e curiosa,

enquanto come pipocas e bebe coca-cola

a olhar para o espetáculo da fumarada.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025