Translater

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Compradores de inutilidades [626]

 


Os compradores de inutilidades

são mais inteligentes do que parecem,

constroem fantasias

e imitam as crianças nas compras.

 

As pequenas coisas supérfluas

que os seduzem,

conquistam-nos do modo contente

de uma criança

que coleciona búzios na areia do mar.

 

Sonham com eles fechados nas mãos

porque, se desaparecem,

perdem pedaços do sonho

e choram como um todo-poderoso

a quem tirassem

o mundo recém-construído.

 

 

© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 21 de julho de 2025

Mantos dourados [625]

 


Um lago sossegado reflete o céu

mas, no fundo imerso,

há enigmas que sempre virão à superfície

como o azeite.

 

A altivez que encobre a corrupção

tem mantos dourados,

ornamentados com palavras de glória

que escondem as sombras da história.

 

Quando o espelho protetor se quebra,

a imagem desfoca o enfeite

e o pânico leva à gaguez

ou à fuga para a frente

de uma arrogância acrescentada

num castelo feito de bravatas

e reptos para um duelo,

construindo um novo foco.

 

O riso torna-se fumaça, esconde a incerteza,

mas a verdade rasgará o véu e,

sob a fachada de força e honradez,

a essência surgirá despida e vergonhosa,

com o trono a ruir sob os seus pés.

 

Ou talvez não,

se o político corrupto tiver amigos na Justiça.

 

 

© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 14 de julho de 2025

Piruetas [624]

 


O vício do ilógico

e da contradição

é o contentamento boçal

dos descontentes.


As pessoas normais

dizem tolices por vaidade

e dão pancadinhas

nas costas dos amigos

por exaltação.


Os cegos à emoção e ao júbilo

apenas mostram

pequenas atitudes da vida

dando piruetas com a mente.

 

 

© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 7 de julho de 2025

Não uso cocaína [623]

 


Não uso cocaína,

haxixe ou outras drogas,

os meus incentivos são sensíveis

à espuma de um café

e ao fumo de um cigarro.

 

Isso basta-me

para saber mentir com a verdade porque,

sendo social,

a arte precisa de estímulos

para se entranhar

nas almas sensíveis ou vigilantes.

 

Se a construção mente,

ela também nos brinda com a verdade,

que não existe,

através do embuste da ficção.

 

 


© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 30 de junho de 2025

Tudo é alegre e solidário [622]

 


Tudo é alegre e solidário

no âmago das nobres almas felizes

na festa que não dura mais que uns vapores,

enquanto as palavras,

que parecem sentidas,

tentam seduzir a indecisão dos calados,

tida por timidez.

Na contradança festiva,

empolgada na repetição dos slogans

e nos vai-acima vai-abaixo do jantar,

há sempre uma ligação etilizada

entre os altruísmos e os digestivos

e são inúmeras as intenções

que padecem das metáforas dos copos

ou da redundância da sede.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 23 de junho de 2025

No palácio [621]

 


No palácio

não há assento para todos os deuses políticos

que se rejeitam uns aos outros,

que procuram o poder

com ideais que vão caindo no estrume

se ainda não o são.

Sem limites,

cada um promete tudo a todos

e a coerência e a impossibilidade

são assobios e pios inaudíveis

que passam ao lado das caras de pau

que fazem simulando uma visão que não têm.

E nós desfrutamos da festa

na comunhão das promessas de um dos deuses.

Ou viramos as costas a todos

à espera que D. Sebastião

chegue numa manhã de nevoeiro

ou porque preferimos lavar as mãos como Pilatos.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 16 de junho de 2025

O reino dos céus [620]

 


Feliz quem não quer mais da natureza

do que aquilo que ela lhe dá,

como o camponês,

que vive do instinto e da tradição agrícola,

que se satisfaz com o que o tempo lhe dá

alicerçado na intuição e na dedução.

 

Feliz quem se encanta

na observação da vida alheia,

vivendo um espetáculo virtual,

como o espectador de filmes

que vive da fantasia e, enquanto tal,

esquece a vida real.

 

Feliz quem renuncia a tudo e a quem,

porque a tudo renunciou,

nada se pode roubar,

como o eremita

que foge da vida e, enquanto não morre,

passa o tempo a dormir.

 

Todos abdicam

de parte da sua individualidade e,

porque o fazem, conscientemente ou não,

são mais facilmente felizes.

 

Para não falar dos pobres de espírito,

esses sim, são inconscientes mas felizes,

ou não fosse deles o reino dos céus…

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 9 de junho de 2025

Aprendizagem [619]

 


Quando desvio

o olhar demorado de uma imagem,

recebo a violência do sol na retina.

Magoa-me e queima-me

ver o deslustre e o embuste externo de mim.

 

Escorrego e caio

nos imaginados afetos e apoios

quando os passos dos outros,

dessincronizados dos meus,

me induzem num abismo desprotegido e vão.

 

Ainda vivo,

quase morro na sombra desagradável

de artes emaranhadas

que a próxima aragem dissolverá

e a noite talvez ilumine os seus vestígios.

 

Os contrastes ferem-me,

mas alimentam-me no doloroso calvário

do meu crucificado aprender.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 2 de junho de 2025

Chalaça doméstica [618]

 


Escravos do brilho e da cor,

dançamos na verdade e na mentira.

Se não dançamos,

não sabemos do gelo intenso

que há no cimo das montanhas

ou do calor sufocante

no meio dia do deserto.

Mas dançamos e,

sob as vestes,

temos um corpo mortal que resiste

a tudo a que, sozinhos,

pensamos fazer frente,

mas que não é senão

a chalaça doméstica

da verdade em que nos cremos.



© Jaime Portela, Junho de 2025