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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Da vida [633]

 


Se não pudermos obter algo de notável da vida,

exploremos pelo menos obter algo

de não podermos obter algo de notável da vida.

Façamos da insolvência uma glória,

algo afirmativo e alicerçado com pilares,

grandeza e aceitação da vida.

 

Se a existência não nos concedeu

mais que uma frigideira como prisão,

como a que Salazar oferecia aos opositores,

tentemos decorá-la

com os vestígios dos nossos sonhos,

esboços de cores fortes,

cinzelando o nosso desprezo

na dura hipocrisia das paredes que nos cercam.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Alzheimer [632]

 


O nevoeiro

retira gradualmente as mãos do pensamento.

Os gestos ficam desorganizados, até suicidas,

à espera que as curvas sinuosas das andorinhas

indiquem o caminho sem destino conhecido.

A espada invisível quase toca no pescoço

e a fala encurta o acento

numa insciência tónica gradativa.

Os desconjuntos das palavras não rimam

e andarilham em ziguezagues hilariantes

por atalhos aleatórios incitados pelo vento.

Cada miscelânea da memória

plasmada pelos sonhos na realidade

circula em contramão

e Deus e o Diabo

estão cada vez mais enovelados.

Ainda que chovam ajudas

a mirração do propósito acaba num rio sem caudal.

A demência abre a porta e alimenta-se da memória

até que fica dona das palavras e dos gestos

até ao fim, afortunadamente ignorado.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


A Doença de Alzheimer é uma doença neuro degenerativa crónica e a forma mais comum de demência. Manifesta-se lentamente e vai-se agravando ao longo do tempo. O sintoma inicial mais comum é a perda de memória a curto prazo, com dificuldades em recordar eventos recentes. Os primeiros sintomas são geralmente confundidos com o processo normal de envelhecimento. À medida que a doença evolui, o quadro de sintomas inclui dificuldades na linguagem, desorientação, perder-se com facilidade, alterações de humor, perda de motivação, desinteresse por cuidar de si próprio, desinteresse por tarefas quotidianas e comportamento agressivo. Em grande parte dos casos, a pessoa com Alzheimer afasta-se progressivamente da família e da sociedade. Gradualmente, o corpo vai perdendo o controlo das funções corporais, o que acaba por levar à morte. Embora a velocidade de progressão possa variar, geralmente a esperança de vida após o diagnóstico é de três a nove anos. (in Wikipedia).


Este poema foi escrito com base na observação desta doença em 3 pessoas da família.


segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Alterações climáticas [631]

 


Curvado sobre a terra

a fazer regos para que a água passe

e regue o milheiral na perfeição,

cavo com o jeito dos meus antepassados.

Ao mesmo tempo,

desço um rio bem largo e caudaloso

dentro de um barco a remos

evitando dragões que dormem nas margens.

E eis que salta uma rã aos meus pés

e um dragão cospe fogo

por cima das águas turvas do rio.

O susto e o desassossego misturam-se,

salto para o rego seguinte,

que ainda está seco,

e remo depressa para fugir ao dragão.

As duas coisas são claras como água

de uma fonte cristalina:

a terra molhada da enxurrada

que os meus pés descalços pisam

e a quilha do barco em terra seca

onde os remos proclamam

uma contínua chiadeira por falta de óleo.

Olho para trás e vejo que o milho

está a ser queimado pelos dragões.

O convés está cheio de gente,

a assistir, insegura e curiosa,

enquanto come pipocas e bebe coca-cola

a olhar para o espetáculo da fumarada.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2025


segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Da tristeza e da alegria [630]

 


Por que morrem os fadistas de Lisboa

De saudade ao cantar na Madragoa?

Por que chora a guitarra de Alfama

A trinar a triste sina que derrama?

 

Por que rodam as moçoilas de Viana

A sorrir ao dançar a chula safardana?

Por que tocam tão bem as concertinas

Com tantas malgas de verde e sardinhas?

 

A alegria e a tristeza são heranças

Do sangue, da paisagem e do clima

Ou são contas herdadas de outras danças

Que, espontâneas, vêm ao de cima?

 

 

© Jaime Portela, Agosto de 2025


segunda-feira, 18 de agosto de 2025

As ideias [629]

 


As ideias quase nunca são nossas,

tomámo-las dos outros,

tal como aprendemos a falar.

Podemos puxar-lhes o lustro,

mas as ideias dos outros

são rios por onde a água só desliza

ao sabor dos seus desejos.

Mimetizamos os outros? Não,

oferecemos-lhes a possibilidade

de nos imitarem.

Porque uma ideia

pode ter dimensão e beleza,

mas se não tiver uma ou outra,

a influência nos outros

será reduzida proporcionalmente.

 

 

 

 

© Jaime Portela, Agosto de 2025


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Muda de alma [628]

 


Queres ter novas sensações?

Será fácil,

basta construir uma alma nova,

mais jovem

ou diferente da que tens.

Gorado será o esforço

de querer sentir

de um modo diferente

sem trocar de alma.

Porque tudo é como o sentimos

e a forma única

de veres coisas novas

é haver originalidade

no experimentá-las.

Tu sabias isto sem o saberes,

por isso, muda de alma.

Não me perguntes como,

tens de ser tu a descobrir.

 

 

© Jaime Portela, Agosto de 2025


segunda-feira, 4 de agosto de 2025

O jornalismo é uma guerra [627]

 


Bebemos apenas os títulos

sem mexermos as cartilagens.

Ou, no máximo,

os lides ou preâmbulos.

E nem percebemos que o corpo

tem um líquido diferente

e normalmente mais macio.

 

Jornalismo e sensacionalismo,

sem contrapeçonhas visíveis,

passaram a rimar gota a gota

em toneladas de manchetes roliças

a bem das santas audiências ou tiragens.

Embaraçam o caminho alheio,

ferem e destroem os outros a frio

à custa de remotas suspeitas.

 

O sucesso pertence a quem não sente.

O jornalismo é uma guerra

e a notícia é a síntese da batalha.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2025


segunda-feira, 28 de julho de 2025

Compradores de inutilidades [626]

 


Os compradores de inutilidades

são mais inteligentes do que parecem,

constroem fantasias

e imitam as crianças nas compras.

 

As pequenas coisas supérfluas

que os seduzem,

conquistam-nos do modo contente

de uma criança

que coleciona búzios na areia do mar.

 

Sonham com eles fechados nas mãos

porque, se desaparecem,

perdem pedaços do sonho

e choram como um todo-poderoso

a quem tirassem

o mundo recém-construído.

 

 

© Jaime Portela, Julho de 2025


segunda-feira, 21 de julho de 2025

Mantos dourados [625]

 


Um lago sossegado reflete o céu

mas, no fundo imerso,

há enigmas que sempre virão à superfície

como o azeite.

 

A altivez que encobre a corrupção

tem mantos dourados,

ornamentados com palavras de glória

que escondem as sombras da história.

 

Quando o espelho protetor se quebra,

a imagem desfoca o enfeite

e o pânico leva à gaguez

ou à fuga para a frente

de uma arrogância acrescentada

num castelo feito de bravatas

e reptos para um duelo,

construindo um novo foco.

 

O riso torna-se fumaça, esconde a incerteza,

mas a verdade rasgará o véu e,

sob a fachada de força e honradez,

a essência surgirá despida e vergonhosa,

com o trono a ruir sob os seus pés.

 

Ou talvez não,

se o político corrupto tiver amigos na Justiça.

 

 

© Jaime Portela, Julho de 2025